quinta-feira, 27 de março de 2008

Taanteatro - teatro coreográfico de tensões


Autores: Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek
Azougue Editorial - RJ - 2007

Prefácio de Peter Pál Pelbart

Quando uma artista do quilate de Maura Baiocchi decide compartilhar por escrito seu percurso criativo é porque sua experiência adensou-se a tal ponto que pede uma nova modalidade de propagação. Esse livro não é apenas o registro de um rico trajeto da autora e da Taanteatro Companhia na interface entre teatro, dança, performance, nem é só (embora também) um esforço respeitável em debruçar-se sobre sua produção a fim de enunciar a lógica de seu processo criativo, em meio aos árduos bastidores de um trabalho solitário, ainda que coletivo, e corajoso.

Este livro é também, e talvez sobretudo, uma obra por si só, onde os autores "põem em cena" por escrito os elementos que colheram ao longo do tempo, sejam eles conceitos, imagens, métodos, teorias, gestos, entrevistas, fotografias. O leitor se verá confrontado com um "arrastão" - em que os autores foram "roubando" tudo o que encontraram no seu caminho, a filosofia pré-socrática, a física quântica, as neurociências, a semiótica, a fisiologia, a psicologia transpessoal, a teoria do mandala etc. Mas nada disso é gratuito: o leitor tem a chance de vislumbrar, na pulsação daí resultante, aquilo que parece constituir o fundo da própria estética do taanteatro e de sua prática artística - a "coreografia das tensões". Para além de um teatro representacional, narrativo, dramático, que reserva à tensão um lugar pré-determinado, com funções de empatia ou identificação, e igualmente para além de um teatro épico, com seus efeitos de distanciamento e tomada de consciência, o taanteatro privilegia o teatro da crueldade e seus desdobramentos: a idéia física do teatro, a dimensão da convulsão, a linguagem anárquica, o domínio das forças, a matéria intensiva, o plano dos afectos, a prioridade da presentificação.

Distanciando-se do teatro psicológico ou social, privilegia-se aqui a anulação de fronteiras entre linguagens, o ritmo, as sonoridades, o gesto, o movimento, a descontinuidade. Inscrevendo-se na linhagem do teatro pós-dramático, o principal aqui é o corpo, com sua potência e seu gesto livres de sentido, com sua tensão própria. Evocando referências provenientes do butoh, dos movimentos de vanguarda, da dança contemporânea, da experiência antropofágica, vão afinando e precisando sua concepção singular de teatro, de tensão, de corpo. E ao buscar inspiração sobretudo em Nietzsche, Deleuze, Guattari, Lyotard, elaboram os conceitos originais de Vontade de Tensão, ou de Esquizopresença, entre muitos outros achados preciosos. Através do acoplamento de elementos díspares provenientes de filósofos diversos, e sobretudo a partir de sua rica experimentação ao longo das últimas décadas, apreende-se o que os autores entendem ser o estofo de sua arte e de seu método, muito justamente intitulada de coreografia das tensões. Atentos à qualidade das tensões, suas oscilações, níveis, limiares, se opõem ao performer e ator que não operam com essa matéria intensiva, apenas com a representação, o discursivo. Assim, o que é o mar para um performer? Não se trata de imitar a forma, mas como que captar a força do mar, ou do cavalo, não é trotar como um cavalo, mas ser tomado pela destreza, velocidade, selvageria... Como dizem os autores, não é preciso ir a um haras, numa hípica, ver filmes de cavalos... pois o mundo, essa multiplicidade de forças já está dentro de nós.. o maior perigo é interpretar, resvalar para a caricatura ou o estereótipo... a própria dança é um estado de gênese, sendo o corpo um lugar onde tudo é possível, um estado de potência. Afinal, o jogo das tensões é o plano do acontecimento, com sua dimensão incorporal, onde o sentido é precisamente esse entre, esse jogo. No fundo, criam-se processos em vez de obra, individua-se acontecimentos em vez de sujeitos ou objetos. Se Deleuze está aqui presente, é um Deleuze devorado no próprio processo de fermentação estética, e não erigido em instância de caução filosófica. No fundo, como todo artista, os autores precisam de aliados, eles convocam contigüidades, reconhecem filiações, estabelecem vizinhanças teóricas.

O livro de Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek é um convite generoso para que o leitor penetre no universo que eles mesmos freqüentaram e a partir do qual fecundaram seu trabalho. Há momentos em que estamos diante de um relato autobiográfico, ou melhor, histórico-autobiográfico, há momentos em que lemos uma espécie de manifesto, em outros temos como que o protocolo da experimentação que foi desenvolvido junto com seus parceiros e atores, em outros tem-se como que um guia para interessados em iniciar-se a esse trajeto, tem-se ainda trechos onde há uma coleta de material múltiplo, como entrevistas mais coloquiais, registro de experiências, etc. O conjunto é múltiplo, variado, e o leitor vai sendo conduzido a um conjunto de entradas e aproximações as mais distintas ao taanteatro e ao que caracteriza essa concepção de teatro, nas suas relações com a dança, com o ritual, com a música, com a textualidade, com a corporeidade, com a materialidade, com a espiritualidade, com o cosmos, com a vida, com a filosofia. Como se vê, o trabalho tem, assim, uma tendência de ir percorrendo em círculos concêntricos esferas cada vez mais amplas, e no limite, a totalidade do universo. Isso tem a vantagem de favorecer as conexões, a multiplicidade das dimensões, a heterogeneidade das escalas, e vemos aí uma afinidade com o estilo de um Renato Cohen, mas sempre em função de uma perspectiva prospectiva, propositiva.Se há um esforço louvável de sistematização do método de trabalho, mesmo quando a matéria prima é o acaso, o imprevisto, a indeterminação, a deriva, o estranhamento, a dissonância, a partiturização do corpo, é preciso insistir nisso: o próprio livro já constitui, por si só, uma tal coreografia de tensões, no plano mesmo da escrita, com momentos de grande intensidade. Há uma página especialmente deslumbrante, em que os autores contam sua experiência no Teatro Oficina, e a preparação corporal dos atores do José Celso Martinez para "Os Sertões", na parte referente ao trans-homem. Ao analisar com grande perspicácia o corpo do teatro Oficina ("Sua expressão corporal era simples, direta, cotidiana, psicológica, com ênfase na insinuação sexual. Era recorrente a literalidade do movimento, duplicando ou reforçando o sentido já manifesto no texto da peça"), Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek reivindicam algo mais, a desterritorialização do corpo, a onda-gesto, o gesto-passagem, o ser-mar-oficina, que desse passagem a essa "massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas", como diz Euclides, o polipeiro. Escrevem eles: "Se falamos de sexualidade, sensualidade ou o ato de comer, podermos fazer isso através de um corpo já territorializado, funcionalizado - fazer sexo com os órgãos genitais - quer dizer gestos, expressões já conhecidos. Ou: podemos comer com o corpo todo, encarar todo o corpo como uma vontade de sexo e digestão que copula e devora pelos olhos, braços, pés, pelos cabelos, pelas costas, pelo cérebro, que, resumindo, emana sensualidade, sexualidade e fome por todos os poros transando com o ar, entregue a um jogo cósmico de eros e thanatos. Podemos tentar ampliar nosso corpo, infectando nossa expressão pela dança do pólipo, tingindo nossa mente com seus coloridos fantásticos, sem restringir inconscientemente a nossa expressão a códigos exauridos cuja função principal reside em cooptar o público sem erotizar sua imaginação. Em termos práticos isso significa um enriquecimento de recursos, pois nada nos impede de voltar a fazer sexo ou de comer com os orifícios preferencialmente utilizados para essa tarefa. O Homem precisa ser criado - uma vez que o próprio termo "homem" ou "ser humano" não passa de uma convenção, como se fosse algo já conhecido, resolvido e acabado. Para ir além, para descobrir e criar algo novo a respeito da condição humana, necessitamos de um processo de des-humanização. O Transhomem exige um máximo de disposição, comprometimento e imaginação para transformações constantes de paradigma. É preciso fazer xixi pelo ouvido, e muito mais..."

A meu ver, nesse trecho maravilhoso está a experimentação encarnada do que é uma desterritorialização do corpo, do que é um corpo-sem-órgãos, do que são os devires, do que é o humano demasiadamente humano, o além-do-homem. Do mesmo modo, quando dizem que não existe o corpo em si em cena, mas o acontecimento cênico que ocorre no confronto e no casamento e nas passagens entre as forças múltiplas da polifonia teatral, e que o tônus cênico (tensão, energia) resulta do jogo dinâmico e vivo entre as cinco musculaturas, donde a porosidade, penetrabilidade e atividade irradiadora do mundo, eles já " puseram em cena pela escrita o cerne de sua concepção e de sua prática, acrescentando lindamente, sobre o performer: "Sua vontade de tensão vira também vontade de mistura e de composição, gerando uma perspectiva de fecunda imprevisibilidade. Na medida em que aprende a se lançar no entre, o performer se abre para o outro (não só o devir orgânico, humano e animal, mas também inorgânico), incorporando-o, tornando-o mestiço, monstruoso, ao mesmo tempo que entrega-se à devoração por outras forças da cena" Que esses poucos fragmentos sirvam de convite a um livro instigante e generoso, que poderá servir de estímulo a criadores e pesquisadores de várias áreas, sobretudo àqueles que sentem a urgência de repensar as práticas estéticas da contemporaneidade.

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